O berço de Johan Cruyff: a Holanda que abriu as portas para o Futebol Total.

Camisa 14
4 min readJul 15, 2021

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Durante a década de 1950, o futebol na Holanda era algo muito distante do que imaginamos hoje em dia. Ainda amargavam no amadorismo (enquanto Brasil já havia profissionalizado o esporte em 1933 e a Inglaterra em 1885), os jogadores que tentavam carreira profissional no exterior eram punidos pela Federação com a proibição de atuar pela seleção. Ainda utilizavam o já obsoleto 2–3–5 e suas variações, estando 30 anos atrasados em relação ao WM de Herbert Chapman. Naquela época, o futebol holandês estava em pé de igualdade com Luxemburgo.

Essa sensação de amadorismo e atraso, se misturava ao sentimento de indiferença que pairava sobre um país corroído pela culpa. Sendo mais uma vítima da Blitzkrieg nazista, em maio de 1940 o país é ocupado pelo exército alemão. Os holandeses viram no colaboracionismo a melhor forma de sobreviver e manter alguma autonomia com relação a Berlim, e dessa forma ajudaram na detecção e prisão de membros da comunidade judaica local. Apesar de subjugados militarmente, não apresentaram quase nenhuma resistência e colaboraram desde o início, e quando a guerra chegou ao fim, o arrependimento tomou conta da população. Os acontecimentos desses cinco anos de ocupação se tornaram um tabu, um silêncio ensurdecedor pairava quanto a isso.

Era um silêncio que tinha o intuito de evitar manifestações sobre a dura realidade do que foi o período de ocupação, que tentava ignorar a sensação de que a Holanda não se saiu vitoriosa da guerra, muito pelo contrário. O protestantismo calvinista conservador contribuiu ainda mais com essa sociedade fria e indiferente.

Cercas usadas para segregar os membros da comunidade judaica de Amsterdã (Fonte: Children In History).

O escritor francês Albert Camus, descreveu Amsterdã como um cortejo fúnebre sem fim. No entanto, apenas dez anos mais tarde, a mesma cidade seria reconhecida como a capital da transgressão.

O futebol foi provavelmente um dos melhores reflexos dessa mudança de personalidade da sociedade holandesa. O esporte se inspirou na sensação de liberdade que tomou o país, para dar forma física a ela dentro de campo. Era um jogo livre, ousado e despojado, que mais tarde o mundo conheceria como “Futebol Total”.

Uma nova geração de jovens tomou as ruas. Eram mentalmente distantes da cultura calvinista que reinava entre os que viveram os horrores da guerra, e isso iniciou as primeiras modificações na sociedade holandesa. Eram pessoas novas, com dinheiro e tempo de sobra. A prosperidade econômica depois dos anos sofridos do pós-guerra, permitiu que o dinheiro não se restringisse a apenas cobrir as despesas do lar, garantindo um padrão de vida mais confortável para as famílias. Essa renda extra era utilizada para ir ao cinema, teatro ou comprar discos, mas também no futebol.

Muitos dos jovens que frequentavam os estádios holandeses, pertenciam a grupos culturais que progressivamente ajudaram a mudar o rosto do país. Inspirados pelo cinema de Hollywood, a Nouvelle Vague francesa, e a nova musicalidade que surgiu na ilha do outro lado do Mar do Norte com bandas como Beatles, Rolling Stones, The Who e The Kinks. Essa nova geração estava decidida a pôr um fim no apatismo e melancolia uma vez descrita por Camus.

As revoltas estudantis do país aconteceram em 1962, permitindo que se formassem associações de estudantes libertos do conservadorismo das universidades holandesas. Não muito mais tarde, esse movimento deixou os corredores das escolas e universidades, e tomou conta das ruas de Amsterdã. No final do mesmo ano, milhares de jovens tomaram o centro da cidade para testemunhar o primeiro Happening da história do país, comandado pelo poeta Simon Vinkenoog. Esse era o começo do fim de uma Holanda dominada pelo conservadorismo, a repressão e o calvinismo.

Pôster da Open Het Graf de 1962, primeira Happening da história da Holanda. Organizada por Melvin Clay, Frank Stern e Simon Vinkenoog.
Pôster da Open Het Graf, a primeira Happening da história dos Países Baixos (Fonte: JP Antiquarian Books).

Os movimentos se multiplicaram e começaram a ocupar cada vez mais as ruas da capital holandesa, e junto disso iniciou-se a repressão do governo. Os policiais começaram a dividir as ruas com os manifestantes com ordem de dispersá-los à base de violência, se preciso fosse. Evidentemente, com a ação abrupta tomada pelo Estado, iniciaram-se as primeiras prisões e mortes, que nada mais fizeram do que inflar a revolta popular e impulsionar os protestos.

Em 1966, puxados pelo movimento anarquista Provos, houve uma ameaça de boicote ao casamento da princesa Beatriz com o aristocrata Claus von Amsberg, antigo membro do exército alemão que fez tão mal ao país. O grupo ameaçou “envenenar” o sistema de água da cidade com LSD, assustar os cavalos da escolta e liberar gás lacrimogêneo durante a cerimônia na igreja. Os operários se juntaram aos anarquistas nas ruas, causando confrontos com a polícia, o que resultaria em uma intervenção do Governo. Foram substituídas as autoridades da capital e da polícia, e decidiu-se por adotar uma nova política mais permissiva e liberal. Amsterdã se tornou o centro dos movimentos Hippies e ecologistas da Europa, do uso de drogas e da liberdade sexual.

Desse período de revolução social, que colocou um fim na repressão, conservadorismo e na hegemonia do protestantismo calvinista, substituindo-os por liberdade, ousadia e despretensão. Nesse momento surge um personagem que sintetiza tudo o que se tornou a sociedade holandesa: Johan Cruyff.

Johan Cruyff vestindo uma jaqueta laranja e preta da seleção holandesa, por cima da clássica camisa laranja da equipe.
Johan Cruyff recriou nos gramados toda a metamorfose sofrida pela sociedade holandesa. Liberdade, simplicidade e ousadia foram um dos princípios fundamentais do Futebol Total holandês (Fonte: Turkish Football).

“Jogar futebol é muito simples, mas jogar futebol simples é a coisa mais difícil que há” — Johan Cruyff.

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Camisa 14

Tentando enxergar o futebol para além do campo. Estudante de geografia.